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Ao consultarmos o número 228 da revista L’Architecture d’Aujourd’Hui, datada de Setembro de 1983, deparamos com um artigo sobre “Oito Arquitecturas Diferentes”. Diferentes, defende-se no editorial, porque saídas da crise do petróleo de 1973, a que se seguiu uma crise de valores e conceitos; são arquitecturas reactivas, não se limitando às “tendências efémeras ou aos terrorismos dos pseudomovimentos” que, naquela época, floresciam nas obras dos arquitectos. Mais, no editorial diz-se mesmo que as sete obras e o projecto aí publicados não representam, ou representavam, nenhuma tendência, sendo por isso propostas intemporais. Uma dessas obras é o Bairro de Habitação Social do Fai Chi Kei, em Macau, da autoria do arquitecto Manuel Vicente, com Paulo Sanmarful. As outras sete arquitecturas são assinadas por Gottfried Böhm, Jean Renaudie com Nina Schuch, Oscar Niemeyer, Robert Venturi com John Rauch e Denise Scott-Brown, Kazuo Shinohara, Jürgen Sawade e Norman Foster. Dos oito arquitectos, quatro viriam a receber, entre 1986 e 1999 (entre três a oito anos após esta publicação) o prémio Pritzker, o que deixa adivinhar o critério de qualidade e exigência na escolha das obras e do projecto.
     Construídos em 1981, numa zona de alta densidade habitacional, os dois blocos de habitação do Fai Chi Kei ocupam, em toda a sua largura, uma península sobre o Porto Interior, um dos braços do Rio das Pérolas antes de desaguar no Mar da China. Previa-se a construção de mais quatro blocos, na sequência dos dois primeiros, apoiados por equipamentos ao nível dos pisos térreos ou destacados no interior da península (caso das escolas Primária e Secundária). Destes últimos conheceu-se o projecto, também de Manuel Vicente, mas não se chegou a realizar, porque a decisão recaiu sobre a construção de torres de habitação em vez dos blocos paralelepipédicos na sequência dos iniciais. Toda a ocupação da península do Fai Chi Kei pressupunha, no projecto de Manuel Vicente, um entendimento das condicionantes do lugar, como uma bolsa urbanística de excepção no denso tecido da área do Hipódromo e Areia Preta. Como havia, e há, outras, que acusam hoje orografias passadas, adivinhando-se ilhas onde já não as há, como é o caso da Ilha Verde, ou estreitos istmos transformados em largos parques, como será o caso das Portas do Cerco.
     A estrutura urbana de Macau é orgânica e está em constante mutação, cresce e pulsa com uma dinâmica tão acelerada que obriga sempre a questionarmo-nos sobre a legitimidade dos planos, enquanto ferramentas de gestão daquele território. A península do Fai Chi Kei já não é península, cresceu e engordou para os lados ligando-se às margens que com ela desenhavam baías, dissimulando-se na mole urbana entre edifícios em altura com plantas de oito e/ou 16 habitações em cruz, ou de planta quadrada com acessos centralizados. Estas são hoje as tipologias correntes de habitação para um território que continua a atrair novos residentes vindos da China continental, desprovidos de relação com o lugar e a história, ou estórias, da nova cidade onde se instalam. Macau sempre foi uma cidade de dicotomia cultural: uma presente, assente numa memória colectiva de costumes feitos tradições, famílias de filhos da terra ou vindas de fora, cidade que marcava na pele e nos costumes estes encontros e que com eles escreveu desde sempre a sua história; outra, ausente e indiferente, tradução de uma condição transitória que nega a história e o passado, porquanto estes representam um obstáculo ao inevitável progresso do jogo e do negócio. Dicotomia também presente na sua estrutura urbana, uma cidade “dura”, que leríamos como formal, e uma outra “mole”, que se traduziria como informal. Esta realidade antagónica não se relaciona com a cultural, cruza-a e é-lhe transversal, gerando desta forma uma enorme complexidade vivencial dos seus ambientes urbanos. A parte mole de Macau distingue a cidade da dureza de Hong Kong ou da secura de qualquer cidade em crescimento acelerado do sul da China, desde Cantão a Xangai. Por outro lado, a parte dura integra-a na região e no continente. Na cidade mole encontramos o mercador de estatuetas em pedra de sabão, os pombos assados e servidos no momento, os cheiros de incenso e pivetes, os tecidos – a seda e tafetás de todas as cores –, peças de prata e ouro, almíscar, o algodão e as cangalas, azougue, mercúrio, chumbo, cobres e bronzes batidos, cânfora, estanho, mesas e caixas de escrita, cortinas, dosséis e penduricalhos, louça de barro de Cantão, ruibarbo, alcaçuz e açúcar branco. Na parte dura distanciamo-nos uns dos outros, jogam-se as patacas reais e virtuais, coexiste-se com outros sem nos alinharmos com eles, permitimo-nos existir. Ao contrário, na cidade mole, encontramo-nos com os outros, os presentes e os ausentes. Este sentido de encontro cultural numa estrutura urbana tão flexível, constitui a verdadeira modernidade de Macau, onde cosmopolitismo passa a ser sinónimo de mutação e permanência.
     Não se pode impedir o crescimento de Macau, nem a contínua substituição da sua pele de cobra, mas também não se pode deixar que a cidade mole se ausente permanentemente, substituída por uma estrutura dura, de forma que não permita aos seus habitantes o exercício completo da sua cidadania (moderna).
     Por esta razão o complexo de habitação social na outrora península do Fai Chi Kei é tão importante para Macau. Não é só devido à sua inegável e internacionalmente reconhecida qualidade arquitectónica, nem tão só pela sua inteligente integração de ruas, praças e espaços públicos confinantes, nem pelos espaços de galerias, acessos, escadas e varandas que garantem áreas de encontro e átrios de conversas; já não é só pelo seu valor acrescido cultural, antropológico, internacional, mas, sobretudo, pelo que significa enquanto síntese e simbiose entre culturas dos presentes e dos vindouros e da cidade mole e dura. Esta obra resume em si uma Macau que existe e permanece, acusa geometrias e realidades já ausentes, como os limites da antiga península, aspira ao reconhecimento internacional através de uma arquitectura “macaense”, sublinhando ao mesmo tempo a classificação do centro histórico da cidade como Património Mundial (na altura ninguém o sonhava...). O complexo de habitação precisa de ser reintegrado, adaptado às novas realidades que o cercam, recuperado e transformado para outras funções eventualmente para além da habitação e comércio local (estas funções terão, no entanto, de permanecer), mudando também, adaptando-se como outras estruturas da cidade, mas não como tantas outras que podem ser simplesmente substituídas. Esta obra de arquitectura, e de cidade, não pode desaparecer porque pertence ao grupo das estruturas presentes que conciliam as realidades caracterizadoras de Macau. É uma obra de transição de escalas – não o era quando foi construída, mas é-o agora que a querem destruir. É uma obra de intermediação cultural – não o era quando foi construída, mas é-o agora que a querem destruir. É uma obra orgânica e mole no duro tecido urbano de Macau – não o era quando foi construída, mas é-o agora que a querem destruir.
     O princípio da classificação, a monumento, de qualquer obra começa com um grupo de interesse sobre essa mesma obra. Uma comunidade que se une na defesa dessa obra. O interesse sobre a obra do Fai Chi Kei deixou de ser apenas local, transbordou aquele território, juntou pessoas de Hong Kong, de todo o mundo, como prova a petição online* pela sua defesa. Faz sentido que assim seja, Macau é património internacional, ou melhor dizendo património universal. Será a localidade desta obra tão internacionalista?|

* www.petitiononline.com/mod_perl/signed.cgi?fck1

 


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